Crucifies my enemies....

terça-feira, dezembro 23, 2003

NÃO TENHO FILHOS e tremo só de pensar. Os exemplos que vejo em volta não
aconselham temeridades. Hordas de amigos constituem as respectivas
proles e, apesar da benesse, não levam vidas descansadas. Pelo
contrário: estão invariavelmente mergulhados numa angústia e numa
ansiedade de contornos particularmente patológicos. Percebo porquê. Há
cem ou duzentos anos, a vida dependia do berço, da posição social e da
fortuna familiar. Hoje, não. A criança nasce não numa família mas numa
pista de atletismo com as barreiras da praxe: jardim-escola aos três,
natação aos quatro, lições de piano aos cinco, escola aos seis. E um
exército de professores, explicadores, educadores e psicólogos, como se
a criança fosse um potro de competição. Eis a ideologia criminosa que se
instalou definitivamente nas sociedades modernas: a vida não é para ser
vivida - mas construída com sucessos pessoais e profissionais, uns atrás
dos outros, em progressão geométrica para o infinito. É preciso o
emprego de sonho, a casa de sonho, o maridinho de sonho, os amigos de
sonho, as férias de sonho, os restaurantes de sonho, as quecas de sonho.
Não admira que, até 2020, um terço da população mundial estará a mamar
forte no Prozac. É a velha história da cenoura e do burro: quanto mais
temos, mais queremos. Quanto mais queremos, mais desesperamos. A
meritocracia gera uma insatisfação insaciável que acabará por arrasar o
mais leve traço de humanidade. O que não deixa de ser uma lástima. Se as
pessoas voltassem a ler os clássicos, sobretudo Montaigne, saberiam que
o fim último da vida não é a excelência. Mas a felicidade.

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