Crucifies my enemies....

terça-feira, março 22, 2005

Crónica de Pedro Mexia in Grande Reportagem

Uma amiga de longa data pediu-me que lhe corrigisse as vírgulas na
Tese de doutoramento. Com certeza que sim. Atirei-me, pois, às vírgulas.
Mas confesso que não estava preparado. É que a tese - não sei como
dizer isto - debruça-se sobre a problemática da cessão dos créditos.
Confortavelmente esticado na minha caminha, de lápis na mão, dei por
mim teletransportado ou, se preferirem, transplantado para a década de
noventa do século passado. Essa tarde recordou-me outras tardes, árduas e
infindáveis, há 12 ou 13 anos. Era, nessa época, aluno do curso de
Direito.
Saquei o canudo em 1995. E, depois disso, tenho mantido o silêncio.
Mas agora, passado o período de nojo, aproveito para deixar aos meus
leitores dois ou três avisos sobre o dito curso.
Pois bem: trata-se da mais inconcebível, árida, macilenta e desprezível das criações humanas. Reparem que nem sequer me refiro ao Direito propriamente dito: sobre essa matéria a conivência dos juristas com tiranias sortidas e as obras completas do Kafka chegam e sobram. Quero agora evocar apenas o curso, aqueles cinco penosos anos de colónia penal. Convém aliás explicar que o curso de Direito tem cinco anos não por exigências curriculares mas como forma de homenagem aos planos quinquenais soviéticos. A lógica de opressão,de dirigismo e de extermínio é a mesmíssima. Não vou agora aqui sumariar a minha experiência estudantil, a qual, aliás, foi aprazível a princípio e se tornou depois indiferente. Mas recordo-me bem do momento de viragem. Em pleno terceiro ano, o meu descontentamento veio ao de cima violentamente, como um almoço mal digerido. Estava numa aula de Direitos Reais. Estava aborrecido.
Estava com sono.
Escrevinhava coisas num caderno. E em cima do estrado, o monocórdico mestre dissertava sobre a «servidão de estilicídio». Eu explico: trata-se de garantir escoamento das águas quando um prédio vizinho não está a mais de cinco decímetros do outro. A minha vaga insatisfação com o curso tornou-se, nesse segundo, algo de muito mais agudo, como uma úlcera que rebenta. Eu não sabia o que queria fazer da minha vida; mas não era certamente estudar o escoamento de águas e a distância entre os
prédios.
Que se lixasse o estilicídio.
Eu queria distância era do curso. Porque essa era a nossa faina.
Engolíamos,como óleo de rícino, noções assim intragáveis durante dez infindáveis semestres.
Não apenas a acção de despejo, o IRS ou a recorribilidade do acto administrativo, assuntos minimamente perceptíveis, mas muitas e muitas bizarrias. A Constituição da Costa Rica. O inadimplemento culposo. A impugnação pauliana. A venda a retro. A ineptidão da petição inicial.As prescrições presuntivas. A substituição quase-pupilar. O fideicomisso.O anatocismo. A enfiteuse. Os vícios redibitórios. Os impedimentos dirimentes relativos. O contrato sinalagmático. O registo das sociedades em comandita.O benefício da excussão. E, claro, a cessão de créditos. É preciso ter um interesse desmesurado acerca das regras que regulam uma sociedade, em
todos os seus nauseabundos detalhes, para estudar estas salgalhadas. E para aguentar os infindáveis casos entre o "senhor A" e o "senhor B", que vendiam um ao outro casas, se processavam, pediam licenças de uso e porte de arma, deixavam violas de gamba em usufruto, e por aí em diante. Por vezes iam mais longe: o usufruto era em Amesterdão, a arma de Poiares da Beira, o processo na Califórnia e a casa nas Comores. Quid juris?, perguntavam, sacanas,os lentes. Não sabíamos nem queríamos saber.
Por esta altura, todos nós queríamos mais era que o senhor A e o senhor B se quilhassem. Manhãs e tardes a fio assisti a isto. Noites e noites a fio estudei isto. Vou ter olheiras para sempre por causa disto. Arruinei a minha caligrafia por causa disto. Sofri horrores de nervos e bexiga por causa disto.
Aguentei o prof. Soares Martinez por causa disto. Comprei e sublinhei de capa a capa catrapázios de setecentas páginas sobre a pensão de alimentos por causa disto. Por isso vos digo, ó finalistas do liceu: não se metam nisso.
Parafraseando Jaques Séguéla, diria que há actividades bem mais
decentes.
Como pianista num bordel.

6 comentários:

Eva Gonçalves, PhD Sociology disse...

Então foi isto que a minha amiga Rute me quis explicar sobre o curso de direito e sobre os motivos que a levaram a fazer algo completamente diferente na sua vida profissional ...

Luke disse...

Mas de qq das maneiras não me arrependo....

Eva Gonçalves, PhD Sociology disse...

Pelo que vi da reacção dela, ainda bem para ti! Mesmo!!!

Luke disse...

Eu sei, tenho advogados astrólogos, directores de marketing etc etc...

Eva Gonçalves, PhD Sociology disse...

Sim, astrólogos daqueles que fazem mapas astrais ... EU SEI.

Pedro Rodrigues disse...

Brilhante dissertação! Gostei!